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Desde 2022, por meio do Prêmio Gastronomia Preta, venho discutindo a questão do apagamento dos nossos na gastronomia. Obviamente, isso repercute nas marcas de alimentos e bebidas que contratam pessoas públicas para fazerem o famoso merchandising - uma estratégia promocional em que uma pessoa usa um produto ou serviço sem parecer que aquilo é uma publicidade paga.

Muitas vezes, propostas de empresas são desrespeitosas com influencers gastrônomicos por uma desvalorização pautada na discriminação racial Foto: Midjourney

E, muitas vezes, as marcas querem pagar por meio de permuta: quando você recebe o pagamento em produtos daquela empresa que você aceita comunicar a experiência de uso. Mas duas situações têm acontecido com frequência com influencers pretes na Gastronomia: o descuido e a relação abusiva de algumas marcas com os nossos.

Tenho ouvido com frequência desabafos e relatos de chefs e influencers pretes que passam por essas situações.

Quando comecei a escrever esse artigo, pensei que estava cunhando um termo. Mas, para não incorrer em erro, joguei no Google a expressão “escravidão digital” e verifiquei que alguns estudiosos já utilizam essa nomenclatura. Como não se trata de uma revisão de literatura sobre a expressão, apresento o autor Ricardo Antunes em seu livro “O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital” como referência para quem quiser aprofundar nela.

Todavia, meu recorte para esse termo a partir das minhas reflexões se constrói por meio da questão racial e dos abusos reiteradamente ocorridos com o nosso povo. Trago aqui três casos que me incomodaram recentemente e apresento a vocês brevemente os personagens.

Chef Paulo Rocha - chef confeiteiro com vasta experiência em confeitaria francesa; primeiro chef desafiante a desbancar um Iron Chef no reality show com mesmo nome; jurado de provas de confeitaria em edições do Masterchef; referência para muitos confeiteiros e confeiteiras pretas no Brasil;

Chef Maria - nome fictício para não expor a chef e fechar portas; uma das principais referências acadêmicas quando o assunto é comida quilombola e comida afro-brasileira; segunda mulher preta a ser formar em um curso de gastronomia no Brasil; participante do Mestre do Sabor (TV Globo) e uma potência de diferentes formas;

Endrik Rafael - participante da edição 2023 do Masterchef Amadores (minha torcida eterna); cozinheiro nas horas vagas, teve alto engajamento nas redes e ganhou muitos seguidores em sua participação no programa.

As duas dimensões que quero abordar neste texto são (i) escravidão digital maquiada de permuta e (ii) a escravidão digital maquiada de “Estamos te vendo”. Vamos aos casos reais destes três personagens que explicam essas duas dimensões.

(i) - A escravidão digital maquiada de permuta ocorre quando uma marca acha que está lhe fazendo um grande favor ao lhe enviar produtos ou oferecer experiências em serviços obrigando ou coagindo o influencer a fazer entregas (Reels ou Stories).

Vamos combinar que alguns produtos super interessam - e não vou fingir que eu não faria um vídeo de um recebido de bons produtos ou experiências que valem a pena (olha só eu indo em vários restaurantes como convidado).

Mas, nas idas aos restaurantes, em todos os convites, apenas uma vez eu recebi o briefing de construir um vídeo; e, também, me queriam no lugar no mínimo duas vezes no mês sem me pagar nada. Daí, eu pulei fora porque eles queriam limitar os horários e dias que eu poderia ir - queriam me ter quase como embaixador de acordo com as suas imposições.

Se isso não é abusivo, não sei o que é. Mas, em todas as outras vezes, nenhum assessor de imprensa ou dono(a) de restaurante me pediu que eu fizesse vídeos - os vídeos são espontâneos.

O caso do chef Paulo Rocha demonstra como a escravidão digital acomete nosso povo ou quem está começando a bombar como influencer (que não é o caso do chef). Uma marca de açúcar entrou em contato com ele pelo Instagram para oferecer um trabalho como influenciador digital.

Antes de apresentar a proposta vou explicar o que é um Reel Culinário. Esse tipo de conteúdo tem como principal característica a demonstração da preparação de uma receita - e o foco pode ser tanto no ingrediente, no preparo, na descrição da receita, evidenciar um utensílio ou focar em um produto utilizado.

É muito trabalhoso gravar esse tipo de conteúdo porque você precisa de um espaço de cozinha bonito (que às vezes tem que ser alugado); ter no mínimo uma outra pessoa gravando e fazendo os takes enquanto o influenciador prepara a receita; precisa de uma boa iluminação e depois de editar o vídeo (que pode demorar tanto quanto o preparo).

Adicionalmente, você não faz uma receita com apenas um ingrediente - o que envolve outros custos. Em resumo, fazer um Reels Culinário é trabalhoso, demanda tempo e equipe para ajudar.

Apresentado este contexto para quem talvez não seja tão conectado(a) ao mundo da produção de conteúdo na gastronomia, o que a marca em questão propôs para o chef Confeiteiro Paulo Rocha é RIDÍCULO!

Essa mesma marca esteve associada a uma fornecedora de matéria prima com 32 funcionários resgatados pelo Ministério Público do Trabalho por situação análoga à escravidão em Pirangi (interior de São Paulo) - de acordo com a Carta Capital.

Possivelmente, esta fornecedora oferecia os menores preços; mas a custo de quê? Da vida de 32 pessoas. O match desta situação relatada na mídia e o fato abaixo é por sua conta, leitor(a):

A oferta do trabalho para Paulo Rocha:

  • • 20 kg de açúcar no primeiro mês
  • • 10 kg de açúcar no segundo mês
  • • 10 kg de açúcar no terceiro mês
  • • 1 eletrodoméstico no valor de até R$ 900,00 que ele escolheria e receberia em forma de produto

Meu lado administrador logo quis fazer as contas considerando 1 kg de açúcar refinado no valor médio de R$ 4,00 (preço de venda para o consumidor, e não o preço de custo para a empresa); os 40 kg de açúcar em três meses mais um eletrodoméstico de até R$ 900,00. O somatório disso é R$ 1060,00.

Para o que representa o confeiteiro no mercado, sua expertise e sua representatividade, esse valor já seria baixo se ele fosse convertido em reais e não em permuta. Mas pasmem-se: a marca de açúcar não queria apenas 1 Reel; eles queriam 7 Reels Culinários para essa permuta - o que representaria uma “remuneração” de menos de R$ 150,00 por Reel produzido pelo chef e sua equipe. E com esse dinheiro ele teria que comprar ainda outros ingredientes (até porque com açúcar puro só dá prazer calda e algodão doce).

Será que você consegue compreender a nossa revolta por esta proposta? Primeiro, queria entender onde Paulo Rocha colocaria 40 kg de açúcar - visto que ele é o chef confeiteiro executivo de seis casas em São Paulo (SP); não empreende, não vende doces em delivery e não aceita encomenda particular.

A marca de açúcar pode ter pensado que faria um grande favor a ele enviando 40 kg de açúcar - ledo engano!

Mas é assim que algumas marcas nos tratam: querem surfar em cima do nosso engajamento oferecendo produtos ou experiências pelos quais, às vezes, nós nem pagaríamos. Nem os influencers das dancinhas sem conteúdo gastronômico aceitariam uma proposta RIDÍCULA como essa. Ufa, ainda bem que o Paulo e sua equipe rejeitaram essa proposta!

(ii) - A escravidão digital maquiada de “Estamos te Vendo” - uma pessoa que pretende ser influenciador(a) digital quer ser vista (isso não tem o que ser discutido). Algumas empresas já entenderam que não dá mais para ter apenas modelos e atores brancos em suas campanhas, pois não é esse o rosto do “Brasil do Brasil”.

O país é preto e pardo em sua maioria e não tem como mais estampar capas, matérias e conteúdo artístico sem pessoas pretas e pardas. Então, marcas e agências de publicidade correm atrás dessa representatividade que muitas vezes é demandada pelos “mimizentos” para fazer o politicamente correto.

No caso das pessoas pretes, como estamos invisibilizados há séculos, quando somos vistos, nos sentimos felizes e esperanças são disparadas nas nossas mentes; afinal, supostamente estão nos vendo.

Todavia, os descuidos acontecem com frequência com os meus pares na Gastronomia. Quando levantamos o caso do chef Paulo Rocha em um grupo de mensagens que temos, outras histórias de desabafo surgiram - como a da querida chef Maria. Nesse divã coletivo que é nosso grupo, Maria relatou uma situação recente que aconteceu com uma grande marca de cerveja.

A marca, por meio de uma agência, iniciou a negociação, apresentou o storytelling da campanha, contratou de boca a chef (sem contrato), pediu roteiros e que ela estivesse disponível na manhã de um determinado dia. Na noite do dia anterior, depois que ela se organizou para deixar os filhos com a família, fechou sua agenda e disse não a outro trabalho, a marca cancelou o trabalho.

E se rebelar contra o sistema é fechar portas para novos trabalhos. Maria, como muitos, preferiu não expor a marca e fechar portas.

Mas Maria não está só nesse barco do descuido das marcas com os influenciadores - principalmente aqueles que são pretes. Endrik Rafael, do Masterchef 2023, relatou no grupo a mesma situação vivida pela chef Maria: na noite anterior cancelaram o trabalho que ele faria na manhã seguinte.

Ou essas agências e marcas precisam demitir funcionários que não representam seus valores ou elas precisam rever seus valores na prática - não no textinho de missão que é apresentado em seus websites. Não dá para tratar as pessoas dessa forma - sejam influenciadoras ou não.

No caso da chef Maria, que trabalhou antecipadamente ao construir o roteiro do vídeo, ela desperdiçou seu tempo e perdeu dinheiro ao fazê-lo. Em outras palavras: ela trabalhou e não recebeu porque não tinha contrato firmado. Se isso não for escravidão digital, eu não sei o que é.

Espero que neste processo de aceleração de tecnologias e uso de plataformas digitais o engajamento e o algoritmo não apaguem o cuidado e o respeito aos profissionais por parte das agências de marketing, assessorias de imprensa e das próprias marcas. Afinal, o que eles querem é chegar até as pessoas. E não se chega às pessoas com descuidos e abusos.

*Breno Cruz é professor efetivo do curso de Gastronomia da UFRJ, pós-doutor e pesquisador, criador do Festival Gastronomia Preta e do curso Pretonomia, avaliador da Forbes Under 30 e jurado do reality show Vida de Merendeira.

**A opinião manifestada no artigo não reflete necessariamente a da Bares&Restaurantes e é de responsabilidade do autor

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